Partire è un pó morire, dice l’adagio, ma è meglio partire che morire.”

(Carrara, na peça teatral Merica, Merica)

terça-feira, 31 de maio de 2011

O Pioneiro Enrico Dell'Acqua

Enrico Dell'Acqua aos 50 anos

Em São Roque, ele é conhecido como o industrial milanês que construiu, ao final do século 19, a tecelagem que mais tarde se chamaria Brasital.

A homenagem feita a ele pela Câmara Municipal, em 1890, embora pequena, permanece até hoje – Enrico Dell’Acqua é uma das principais ruas do centro da cidade. E foi das mais merecidas que o Legislativo fez até os dias de hoje, já que a tecelagem trouxe com ela um considerável progresso para a cidade.

No livro Italianos no Brasil, de Franco Cenni, ele é citado como o proprietário da segunda fábrica de tecidos de algodão instalada no país, fundada em 1891, precedida apenas pela indústria Santa Maria nesse ramo de atividade.  

O PRÍNCIPE MERCANTE 

Mas é na Itália, sua terra natal, mais intensamente na cidade onde desenvolveu seus negócios, Busto Arsízio, localizada na região da Lombardia, que Enrico Dell’Acqua é importante figura histórica, considerado o pioneiro da exportação da indústria de tecidos de algodão do seu país. Busto Arsízio, cidade de muitos monumentos, prédios históricos e obras de arte, como toda a Itália, ostenta numa de suas praças, gigantesca escultura em homenagem ao empreendedor.

O presidente da Itália, Luigi Einaudi, em 1910, apresentou-o aos italianos como o Príncipe Mercante. Os livros de história publicados na Itália no século 20, como Storia di Busto, de Pio Bondioli, fazem alusão ao pioneiro da indústria têxtil.

RESPOSTA INTELIGENTE

Enrico Dell’Acqua nasceu em 1851, em Abbiategrasso, cidade da província de Milão, localizada na região da Lombardia.
Ainda jovem, fez breves cursos na área comercial e passou a exercer um cargo administrativo numa pequena empresa de propriedade de seu avô materno, Pietro Provasoli, em Busto Arsízio.

A indústria do algodão vinha de uma fase ruim, com diversas crises que remontavam a 1862, data próxima à da unificação da Itália, quando, apesar do apoio do governo e de existirem 51 empresas em Busto Arsizio, a indústria têxtil começou a enfrentar problemas no desenvolvimento produtivo pela falta de teares mecânicos movidos a água e impulsionados por motores a vapor importados. Em seguida, a Guerra Civil Americana gerou a escassez da matéria prima, o algodão, que resultou numa migração em massa e, mais tarde, na falta de mão de obra nas indústrias.

Quando a importação do algodão pode ser retomada, a produção da indústria têxtil foi reforçada. Porém, de forma excessiva, sem preocupação com a capacidade de consumo do mercado interno.
Nesse contexto, Enrico Dell’Acqua mostrou, com inteligência e ousadia, como superar os problemas da comercialização. Num momento em que essa indústria tinha seu produto vendido exclusivamente no norte da Itália, ele desce à Puglia, no sul do país, e inicia a expansão do mercado, integrando-se a agentes e intermediários do país todo, agindo com interesse e respondendo às exigências locais.

Enrico Dell'Acqua e seu pai, Francesco

EMPREENDEDOR ARROJADO

Mas a revelação de empreendedor arrojado se deu com a decisão de exportar o produto da indústria têxtil italiana. Para concretizar esse plano, considerado temerário por alguns empresários da época, voltou especial atenção à África menor e à América do Sul, locais onde a presença maciça de italianos garantiria o bom êxito da iniciativa.
Com uma eficiente pesquisa de mercado, conheceu a situação econômico-social da América Latina. Nesse empreendimento, o mercado norte-americano foi descartado quando constatou que a colônia italiana era dispersa e pouco influente nos EUA.

Em janeiro de 1887, Enrico Dell’Acqua enviou mostruários de tecidos de sua tecelagem para diversos comerciantes latino-americanos e abriu uma representação de sua indústria em Buenos Aires. Recebeu apoio financeiro e partiu para a Argentina, enfrentando a concorrência com outras empresas estrangeiras.
Tornou-se o maior fornecedor dos grandes comerciantes de tecidos a ponto de somente uma fábrica não conseguir fazer frente aos pedidos, o que gerou a abertura de novas tecelagens, entre elas a instalada no Brasil, em São Roque.

Em outubro de 1890, criou a Sociedade Italiana de Exportação Enrico Dell’Acqua, formada em comandita por ações, com sede em Milão e filiais em São Paulo e Buenos Aires.
Os negócios do industrial italiano prosperaram, o capital estrangeiro nas fábricas aumentou e os meios de produção se diversificaram. Em 1899, a empresa que tinha como objetivo social estipulado por lei, a exportação de produtos italianos para a América do Sul e a exploração das indústrias de tecelagem no Brasil e Argentina, elevou seu capital social para 10 milhões de liras.
Nesse ano, o sócio fundador Enrico Dell’Ácqua mudou-se para Milão. Deixou a gerência dos negócios no Brasil para Giácomo Gripa e Cesare Bossi e na Argentina, as gerências ficaram nas mãos de Jorge Geniu e Pier Luigi Caldirela.

O grande empresário, apesar da riqueza acumulada, enfrentou sérios problemas com as sucessivas crises que, naquele momento, acometeram a Argentina, onde concentrava a maior parte da produção de suas tecelagens.
Em 1910, pouco tempo depois de regressar de uma de suas viagens à America Latina, Enrico Dell’Acqua faleceu aos 59 anos, vítima de acidente vascular cerebral.

ENRICO DELL'ACQUA E CIA

A indústria por ele construída em São Roque, em 1890, sequer é mencionada com ênfase nos livros de referência, apesar de ter sido a principal, na época, com 3.600 m² de área construída em dois andares.
Uma represa com 4000 m² de área inundada e queda de água de 30 metros de altura, impulsionava seus teares no final do século 19, com uma força de 120 cavalos. A luz de 4000 velas era produzida por um dínamo, movido pela turbina com força motriz de 24 cavalos.
Após ser inaugurada, essa indústria empregava 400 pessoas, em sua grande maioria, italianos, e produzia brim, riscado, toalhas felpudas e simples.
No início do século 20, eram 510 operários e seriam 3000, em 1957, na então Brasital.

CEC BRASITAL - primavera 2010 (Foto: Sílvia Mello)

CENTRO CULTURAL

Após permanecer 17 anos fechado, o prédio da antiga tecelagem foi adquirido pela prefeitura de São Roque, em parceria com o governo do Estado de Sâo Paulo, em 1987. 

O prédio que abriga hoje o Centro Cultural e Educacional Brasital, ainda ostenta em seus salões, outrora ocupados por teares, a imponência das colunas inglesas importadas por Enrico Dell’Acqua.

A Brasital, sua chaminé e o verde do entorno são hoje um dos cartões postais de São Roque. Brasital é símbolo de cultura, arte, patrimônio histórico. Quase cem anos após sua morte, a cidade conserva a marca desse genial empreendedor, Enrico Dell’Acqua.


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segunda-feira, 30 de maio de 2011

O Apito da Fábrica de Tecidos

Tecelagem Enrico Dell"Acqua e Cia em cartão postal - 1900

O sino da igreja Matriz já não emitia o único sinal sonoro a ser reconhecido por moradores da cidade de São Roque, pequena localidade do interior paulista, situada a 58 km da capital, naquele final de século 19. Se antes o bimbalhar do sino anunciava a alvorada e as doze badaladas diziam que era hora de almoçar, agora o apito da fábrica de tecidos reorienta o despertar, o se alimentar, o se recolher. A cidade ainda adormecida sob a névoa da madrugada não sabia, mas a partir daquela manhã em 1890, a vida não seria mais a mesma. 

Os sons que inundavam o ar, quando o apito da tecelagem tocava, alardeavam não somente o progresso, os novos empregos, mas diziam em mensagem cifrada que a vida dos são-roquenses nos muitos dias que se seguiriam seria o reflexo do movimento dos teares nos grandes salões do prédio sustentado por colunas inglesas, coberto com telhas francesas, clareado internamente pela luz que se deixava conduzir através de vitrais venezianos entreabertos, e ancorado no cotidiano por onipresentes sanitários turcos de ferro fundido.

Os meses que antecederam a inauguração da tecelagem foram ao mesmo tempo mágicos e surpreendentes para os moradores da cidade. A magia era a expectativa da novidade que, além de tudo, mudava a paisagem da cidade apontando para o céu, entre as árvores da mata, com a imponente chaminé de tijolos à vista. Femininas, a mata, a indústria e a chaminé seriam cúmplices das histórias de cansaço, frio, fome, amor e sonhos, vividas entre as grossas paredes da fábrica de tecidos. O novo dia-a-dia da cidade surpreendia pela rapidez com que o imenso prédio, como nunca se vira na cidade, erguia-se na grande clareira aberta na mata, às margens do rio Aracaí, e pela inacreditável riqueza que transparecia em todo o material empregado na construção, transportado da Europa em navios, e que só chegava à cidade após uma longa viagem sobre os trilhos da ferrovia.

A estrada de ferro inaugurada em 1875 era o principal meio de transporte entre as cidades do estado. Na estação ferroviária, dos poucos degraus nascidos nas portas dos vagões dos trens de madeira, desciam passageiros que a cidade jamais avistara em tamanha quantidade: eram eles os imigrantes italianos que vinham suprir a falta de mão-de-obra treinada, que a cidade não possuía, para a jornada de trabalho na nova indústria.

Estrada de Ferro Sorocabana - Enio di Luigi, nanquim, 1997

Ao contrário daqueles que deixavam a Itália tendo como destino as fazendas de café espalhadas pelo estado de São Paulo, estes já chegavam cientes de que sua viagem terminaria na cidade cujo santo de devoção, como muitas na Itália, era São Roque. Em seu contrato de imigração rezava o compromisso de trabalhar na segunda tecelagem inaugurada no Brasil, por obra do industrial milanês Enrico Dell’Acqua. A Hospedaria de Imigrantes, no bairro depois denominado Brás, na capital, era a primeira parada de muitas famílias italianas que se tornariam operárias dessa tecelagem, em São Roque, após o desembarque no porto de Santos.
 
A longa travessia de navio de quase três meses, o enjôo causado pelo balanço do mar, as condições precárias de higiene numa apertada terceira classe, as doenças, as mortes, os corpos lançados ao mar, reforçando o sofrimento ainda recente de deixar para trás a terra natal e com ela, amigos e parentes, só seria aliviada para os italianos pela vista da bela cidade, pequena, pousada num vale, rodeada de montanhas que em muito lembrava a Itália.

Mas, antes que isso acontecesse, haveria, ainda, o desconforto da viagem até São Paulo, os dias inseguros na hospedaria, onde encontrar-se com outros italianos, às vezes conhecidos, era sinal de esperança; e outra viagem de trem, mais rápida, porém assustadora, pela iminência da chegada ao desconhecido local de destino. 

Foram antes surpreendidos no encontro com negros, até então desconhecidos para os italianos, no cais do porto, e depois, com a diferença de costumes que se revelava muito marcante, logo de início, na alimentação.
Carregando pesadas malas, vestindo grossas roupas escuras, pés inchados pelo cansaço da longa caminhada, tendo nos braços crianças adormecidas, os anônimos italianos a quem a cidade daria nova identidade, desciam a rua da Estação, aberta anos antes por interferência do Barão de Piratininga, ilustre figura da cidade, junto ao governo da província, para ligar a estação ferroviária ao centro da cidade.

Ao cruzar a ponte sobre o rio Carambeí, a grande massa de italianos era recebida por uma pequena multidão de moradores divididos entre a curiosidade e a compaixão. Alguns já se dispunham a ajudar com as malas, outros iam com a intenção de aproveitar para comercializar ou mesmo oferecer espontaneamente algum alimento aos recém chegados. A modesta população local, distante dos habitantes dos poucos e abastados casarões, se fazia hospitaleira na recepção aos imigrantes italianos.

A proximidade com o Largo da Matriz revelava as primeiras e escassas construções coloniais do centro da cidade. A igreja Matriz, na verdade uma simples capela se comparada às igrejas atuais, com sua pequena torre lateral, tendo sob ela a porta de entrada e ladeada por janelas de madeira, caiada, dando destaque ao telhado escuro, era desde o início um ponto de referência e apoio aos novos habitantes da cidade.

Largo da Matriz - Enio di Luigi, nanquim, 1997

O primeiro impacto foi o do idioma. Comunicar-se era difícil até com os italianos provenientes de outras localidades. Assim, no começo, a tecelagem revelava-se uma verdadeira Torre de Babel, na mistura de diversos dialetos da terra de Dante ao lado da língua portuguesa. Mas nada que uma boa torrente de legítimos gestos italianos não resolvesse com o tempo.

Para os italianos que chegavam a São Roque, uma nova vida se traçava, com a percepção de outros costumes, a adaptação a um clima tropical, embora a cidade, por sua altitude, oferecesse durante parte do ano, temperaturas parecidas com as de algumas cidades da Itália. 

Para a população local tudo se pintara de novo. Se os ares da abolição dos escravos e da República renovavam as esperanças em todo o país, e um novo grupo político se formava em São Roque, composto por abolicionistas e republicanos, a inauguração da tecelagem e a chegada dos italianos mudariam o panorama da cidade em pouco tempo.

Em São Roque de Outrora, o professor Joaquim Silveira Santos, que presenciou esse momento, revela suas impressões:
Um formigueiro humano mourejava de sol a sol, no empenho de concluir tudo no mais breve prazo; e mal coberto e assoalhado o prédio, começou a instalação do maquinário e, em breve São Roque ouvia jubiloso o prolongado e alvissareiro apito chamando os operários para a fábrica.”
“Estou ainda a ver nossa terra no alvoroço daqueles primeiros tempos. Invadiu-a uma febre de construção, alastrando-se não só pelas zonas recentemente abertas como enchendo os claros do centro urbano.”
“O comércio acompanhou este movimento geral, tomando nele os italianos assinalado relevo: padarias, barbearias, açougues, fábricas de macarrão e de cerveja, casas comerciais de todos os ramos, oficinas de alfaiates, ferreiros, sapateiros – em todos os gêneros figuravam eles, e prosperavam.”

Tecelagem Enrico Dell"Acqua e Cia em construção - 1890

Em pouco tempo a população de São Roque aumentara, necessitando de novos serviços. Como conseqüência, outros italianos chegavam, convidados por parentes e amigos, às vezes provenientes da Itália; noutras, fugindo do trabalho escravo nas lavouras de café, para se estabelecer com seus negócios na pequena cidade cujo futuro lhes parecia promissor.

O progresso alcançado pela cidade com a abertura da fábrica de tecidos assemelhava-se ao da época do movimento das tropas arreadas, por volta de 1840, e ao da construção da estrada de ferro, iniciada em 1872. Em agradecimento pela instalação da tecelagem Enrico Dell’Acqua e Cia, a Câmara Municipal resolveu dar o nome do industrial à rua antes denominada Liberdade.
Contudo, a presença dos italianos em São Roque mexeria com os brios dos tradicionalistas mais ferrenhos, a ponto de se revelarem em conversas com amigos e parentes que vinham de outras cidades. O vigário da Matriz, por coincidência, era padre Pedro Gravina, italiano.

Silveira Santos registra em seu livro o desdém contido nos comentários dos conservadores:
- São Roque? Ah! São Roque agora virou colônia italiana!
- Pois é...  Se até o padre é italiano!...



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domingo, 29 de maio de 2011

O Progresso nos Trilhos da Ferrovia


Início do século 20. Com as obras de expansão da ferrovia, Francesco Maraccini, italiano que chegara ao Brasil em 1887, percebe a oportunidade de negócios na vila Mayrink, onde já trabalhava no comércio de secos e molhados, roupas e armarinhos, e ali monta um hotel, que recepciona os novos empregados da ferrovia em seus primeiros dias de estadia na vila. Registros históricos sobre as origens dessa vila do município de São Roque dão conta de que ele foi um dos pioneiros na atividade comercial e no desenvolvimento econômico do lugarejo, tendo também explorado uma pedreira em Briquituba.


Francesco Maraccini
(álbum de família)
MAYRINK

Mayrink progride com a expansão dos trilhos da ferrovia. Pequena localidade distante poucos quilômetros do centro de São Roque, a vila nascera em 1890, em conseqüencia da iniciativa do conselheiro Francisco de Paula Mayrink, então diretor da Estrada de Ferro Sorocabana, ao iniciar a construção de moradias para os operários ferroviários, nas terras de uma antiga fazenda conhecida como Canguera (que na língua indígena significa ossada) ou Manduzinho (nome de seus antigos proprietários). A companhia Sorocabana adquire 264 mil alqueires dessa fazenda, e destina uma parte das terras ao plantio de árvores, visando a produção de madeira para a retirada da lenha que alimentaria as locomotivas. No mesmo local, são construídos o pátio de manobras dos trens e a oficina de manutenção.

Em 1900, o povoado passara a se chamar Conselheiro Mairynk, em homenagem ao seu fundador. Com o progresso e o crescimento determinados pelo advento da ferrovia, em 1904, Mayrink é elevada à condição de distrito de São Roque, município do qual se desmembraria em 1954, quando a grafia de seu nome já era Mairinque.
Em 1906, a Sorocabana inaugura a estação ferroviária de Mayrink, prédio considerado posteriormente de grande importância na arquitetura do país, e tombado em 1986 pelo Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo – em reconhecimento ao valor do projeto do arquiteto Victor Dubugras, que deu forma à primeira estação ferroviária construída em concreto armado do Brasil, cuja estética apresentava o estilo art-nouveau.

No início do século 20, a expansão da ferrovia em Mayrink estimula o crescimento do povoado, a população local aumenta com a vinda dos trabalhadores da estrada de ferro o que gera um novo movimento econômico para a localidade, com incentivo ao comércio e aos serviços. Essa transformação no panorama da vila atrai novos moradores que ali se estabelecem no comércio e na prestação de serviços, entre eles imigrantes italianos que viam naquela vila sua oportunidade de trabalho em solo brasileiro. Mairinque conviveu com os imigrantes que fazem parte da sua história, onde se destacam famílias com sobrenomes italianos que permanecem na cidade até os dias de hoje como Angelini, Bellini, Bertolini, Chesini, Comodo, Ortolani, entre outros. A esses nomes juntam-se os que no passado também fizeram parte de sua história.

DIVERSIDADE NO COMÉRCIO

Francesco Maraccini chegara ao Brasil, por conta própria, um ano antes da proclamação da República, provavelmente a convite de parentes. No centro de São Roque, para onde viera diretamente ao deixar a Itália e fora recebido por um primo da família Sani, ele já desenvolvia outros ramos da atividade comercial, sendo proprietário de um açougue e uma torrefação de café. A esses se somaram os lucros obtidos com os negócios na vila Mayrink, em franco progresso com a expansão da ferrovia. A ascensão financeira que vislumbrara pouco tempo depois de sua chegada ao Brasil com o impulso dado ao comércio de São Roque, após a abertura da fábrica de tecidos, lhe permitira construir para sua família, entre os anos de 1895 e 1896, uma casa de dois andares no número 402 da rua Rui Barbosa, que destacava-se entre as ruas nobres do pequeno centro urbano da época.


Centenária casarão dos Maraccini, rua Rui Barbosa, 402
(Foto: Sílvia Mello)

Definido pelos netos como um homem dinâmico, determinado, inteligente, cuja dignidade se manifestava em suas atitudes nos negócios e no seu dia-a-dia com a família, Francesco, como parte do suposto perfil de todo italiano, era amante da música e das boas refeições. Na casa assobradada da Rui Barbosa, mais precisamente no terraço a céu aberto que construíra sobre o segundo piso da moradia da família, ele recebia os integrantes da Corporação Musical “Liberdade” para churrascos regados a vinho e música. Na recepção aos convidados, a carne era o prato principal, já que o açougue da família ocupava o térreo da residência. Noutras ocasiões, reunia amigos em alegres noitadas, que se seguiam às caçadas das quais participava, onde o vinho combinava com os deliciosos pratos que a Nona tinha que preparar.

Nona era como os netos chamavam Tereza Galli Rossi. Muito jovem, ainda na Itália, ela se casara com Francesco Maraccini, que acabara de completar dezoito anos. Ao que tudo indica, fora um casamento arranjado pelas famílias, fato comum na época. Francesco nasceu em 2 de dezembro de 1867, na pequena San Lorenzo a Vaccoli, um paese, como são chamadas as vilas auto-suficientes na Itália, que pertence à província de Lucca, na região da Toscana. Maraccini, seu sobrenome na Itália tinha como grafia correta Marraccini, com dois Rs, o que provavelmente foi alterado por acidente em sua documentação ao chegar ao Brasil. Filho único, Francesco tornou-se órfão ainda pequeno, perdeu ambos os pais com a diferença de dias. E tratar de seu casamento ainda jovem parecia uma boa oportunidade para os parentes responsáveis pelo menino.

Tereza estava grávida do primeiro filho do casal quando Francesco partiu para o Brasil em 1887. Cruzou o oceano sozinho, na verdade acompanhado apenas de um primo, que logo de se estabeleceu em São Paulo, no bairro do Ipiranga. Francesco viera para conhecer o país e, ao que parece, com recursos para iniciar algum negócio no Brasil, onde a imigração italiana era incentivada. São Roque era seu destino, onde já o esperavam os parentes da família Sani. Voltou à Itália no ano seguinte, quando seu primogênito já havia nascido e retornou com a família para o Brasil onde constatara que havia oportunidades de prosperar.

A CASA

Na Itália, ficou para trás a casa deixada por seus pais, plantada num terreno de 1500 metros quadrados, quando Francesco desembarcou definitivamente em terras brasileiras, acompanhado de Tereza, em cujos braços dormia o menino Leoni Gino, que seria conhecido como “Igino” em São Roque, onde nasceriam os outros filhos dos casal: Ólida, Viveta, Ricieri, Egisto e Éssio.

Lembrado pelos netos como um homem alegre e comunicativo, de estatura mediana, mas com olhos de um azul inesquecível, Francesco integrou-se facilmente à vida da cidade, onde a presença de outros italianos tornava o lugar familiar. Fez amigos entre os Barioni, Verani, Tagliassachi, Salvetti, Baroni... No Brasil, tornou-se maçom, registrado sob o número 12 da Loja “Labor”, em 1919. O emblema da maçonaria ele mandou afixar no alto da fachada de sua residência, no prédio que permanece com a família após mais de um século de sua construção, idêntica à casa em que vivia na Itália.

Aos seis filhos que teve com Tereza, juntaram-se vinte netos e trinta e um bisnetos. Amante do futebol, ele teve tempo de ver o talento de alguns de seus filhos com a bola em campo.
Francesco Maraccini faleceu aos 54 anos, em 17 de novembro de 1921. Em São Roque, encontrou o seu lugar e sua atuação na sociedade local colaborou para a integração da colônia italiana.

RAÍZES

Há poucos anos, o bisneto Elton Maraccini viajou para a Itália. Na bagagem, as certidões de nascimento e casamento de Nona Tereza iam em busca das origens. Na cidade ou comune de Lucca, ele se dirigiu à prefeitura, onde as informações o levaram ao lugar desejado, a pequena San Lorenzo a Vaccoli, há poucos minutos do centro. Na casa indicada, encontrou um assustado Enzo Marraccini, talvez um longínquo primo em sua árvore genealógica. A vizinha gaúcha fez o papel de intérprete e o bisneto pode vislumbrar o local de nascimento da família. A casa de Francesco, que lembra a centenária residência dos Maraccini na rua Rui Barbosa, em São Roque, ainda existe na Itália, onde figura uma paisagem que parece congelada no tempo, materializada em imagens de construções de mais de quinhentos anos.


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 APOIO



Dos Alpes Apuane

Careggine, na Toscana (fonte: toscana.indettaglio.it)

Careggine é uma bucólica cidadezinha italiana que ainda hoje conserva a aparência medieval, onde a beleza natural descortina antigos monumentos, e abriga em seu território cerca de 260 famílias o que significa uma população de pouco mais de 600 habitantes, plantada no centro dos Alpes Apuane, área montanhosa semelhante aos Alpes Suíços, denominada Garfagnana, que reúne outras pequenas localidades, e é considerada a mais verde da Itália. Os acidentes geográficos que a rodeiam, mantêm sua população um pouco isolada, apesar de estar a apenas 63 km de Lucca, a capital da província, ao noroeste da região Toscana. A economia local sempre se manteve pela prática da agricultura de montanha, a extração de carvão vegetal, em função das florestas e do mármore, já que está próxima a Carrara.

Outra atividade típica da Garfagnana é a “caça” ao cogumelo, planta silvestre. Em certa época do ano, como num ritual, o padre abençoa a população que invade a floresta com seus bastões em busca dos funghi, como são chamados pelos italianos os cogumelos.

UM LUGAR FAMILIAR

Careggine foi o berço da família Salvetti, que imigrou para São Roque onde sua descendência já está na sexta geração neste ano de 2011. A semelhança entre a italiana Careggine e a cidade brasileira do interior paulista está nas paisagens, na altitude e na tradição religiosa.

Na Itália, a cidade de origem dos Salvetti é uma das mais altas da Garfagnana com seus 882 metros e a tradição local destaca a festa de São Pedro e São Paulo, em 19 de julho, comemorada anualmente com cerimônia religiosa e procissão; no Brasil, São Roque tem como maior acidente geográfico o Morro do Saboó, com cerca de 1000 metros e, devido à altitude, o clima local já foi um dos melhores do estado na cura de doenças pulmonares, além de apresentar como sua maior tradição, a festa do padroeiro que deu nome à cidade, uma das mais antigas do interior paulista, realizada em 16 de agosto.

Com tanta semelhança, além do costume europeu de se produzir vinho, que tornaria a cidade brasileira conhecida em todo o território nacional como a Terra do Vinho, os Salvetti logo se sentiram em casa ao pisar o solo da pequena São Roque do final do século 19.

A ARTE DE CULTIVAR CASTANHAS

Na Itália, Luigi Salvetti era agricultor e dedicava-se principalmente ao plantio de batatas, além de cultivar castanha e produzir a farinha de castanha, conhecida na Itália como farina di castagna ou farina di neccio.  Possuía vários sítios em locais diversos da Garfagnana onde era também proprietário de uma estação de esqui. O costume de preparar o prato típico chamado Necci, que leva na receita farinha de castanha, como as massas e bolinhos, a família trouxe para o Brasil. 

Luigi casou-se com Carlotta Franchi quando o primeiro filho do casal já completara três anos. Sendo a moça de família abastada, do centro da localidade Careggine – os Franchi tinham grande influência política na época – e o rapaz, simples agricultor, provavelmente a família de Carlotta teria dificultado a união. Alessio Sabbatino Salvetti, o primogênito do casal, acabou conhecido pelo segundo nome, que recebeu por ter nascido num sabbato, dia 18 de fevereiro de 1871, ano a unificação da Itália, exatamente à meia-noite. Sua personalidade mostrou-se típica do ambiente de montanha da terra natal – sério, quieto, fechado mesmo, mas de uma bondade evidente; sofria de epilepsia e por esse motivo não lhe era permitido exagerar no vinho.

Com a transformação da Itália em país, a cidade de Careggine passou a pertencer à província de Lucca, cujo governo penalizava os agricultores com altos impostos sobre sua produção. Além disso, os pequenos produtores de farinha de castanha tinham que disputar o mercado com os grandes produtores de farinha de trigo da Lombardia. Ao longo do tempo, isso empobreceu a população rural, o que foi o motivo que  provavelmente levou a família Salvetti a deixar seu país. 

Sabbatino Salvetti e Francisco Verani (álbum da família Verani)


CONVITE DE AMIGOS

A escolha do Brasil deve ter sido a convite de amigos que eram da mesma região da Itália e já estavam em São Roque.
Luigi Salvetti desembarcou no porto de Santos, em 1893, com sua mulher Carlota e os filhos Sabbatino, Julio, Isolina, Amélia e Marianna. Chegaram para trabalhar na tecelagem Enrico Dell’Acqua e Cia., inaugurada três anos antes.

Mal pisou o solo brasileiro, o filho Sabbatino começou a cavoucar o chão, já que na Itália diziam que a nova terra era rica em pedras preciosas.
Ao chegar em São Roque, aos 22 anos, Sabbatino foi durante algum tempo funcionário da tecelagem, da qual tempos depois, transformada em Brasital, seu filho José Vittorio seria por muitos anos, um dos diretores.
Após certo tempo, abriu um negócio próprio, um armazém que fornecia principalmente alimentos e cujos fregueses eram em sua maioria, funcionários da estrada de ferro. Esse armazém ficava na rua 7 de setembro e depois mudou-se para a  rua Marechal Deodoro, propriedade vendida há alguns meses e, neste 2011, a Casa Paratodos, que se originou do estabelecimento comercial de Sabbatino Salvetti, mudou-se o bairro do Taboão.

UVAS E VINHOS

A família Salvetti também trouxe da Itália o costume de cultivar uvas e produzir vinho e vinagre para seu próprio consumo. Forneciam uva para adegas de São Roque e, no armazém, engarrafavam e vendiam vinhos de outros produtores. Os bisnetos adolescentes de Luigi ajudavam no plantio e na colheita da uva e houve quem pagou seus estudos de medicina vendendo uva nas estradas da Terra do Vinho.

Sabbatino se casaria com Rosa Pieroni, italiana da Garfagnana, que viera de Pieve Fosciana, cidade próxima a Careggine. Dessa união, nasceriam os filhos Alfredo, Rodolpho, José Vittorio, Arthur, Amélia, Pascoalina e Josephina (Bepa).
Julio Salvetti daria origem a outro tronco da família Salvetti. Dessa união nasceram os filhos Luís Leo e Júlio.
As filhas de Luigi e Carlota, Amélia e Isolina, já mencionadas anteriormente, casaram-se, respectivamente, com Pedro e Francisco Verani, pai e filho.

Unida por meio do matrimônio dos filhos a famílias de origem italiana e a outras que se tornaram tradicionais em São Roque, por longos anos do século 20 a família Salvetti influenciaria a vida social, política e o comércio da cidade.


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sábado, 28 de maio de 2011

Das Histórias de um Mascate

 
Vendedor mascate, ele deve ter cruzado o Atlântico quase vinte vezes, entre os idos de 1870 e o final do século 19, na rota Itália-Brasil, em longas viagens de navio, a fim de comercializar os belos tecidos italianos e outros produtos. Sobre esse imigrante, natural da Ligúria, região ao norte da Itália, localizada entre Piemonte e Toscana, o professor Joaquim Silveira Santos, escreveria em seu livro São Roque de Outrora, publicado na segunda década do século 20: Não há quem não conheça, ao menos, por tradição, um Pedro Verani, espírito jovial e comunicativo, negociante muito reputado.

Para a família, há indícios de que sua origem seja nórdica, talvez tivesse uma ascendência austríaca, já que a região em que nasceu faz divisa com a Áustria. Poderia ter sido um cristão novo, segundo os descendentes e, na verdade, ter mascarado sua origem judaica.
Pedro Verani chegaria à cidade de São Roque, pela primeira vez, acompanhado de seu conterrâneo Giuseppe Casali – igualmente vendedor ambulante, depois viticultor – e de sua irmã, Ana Pedrina Verani, que logo retornaria à Itália. A intenção dos amigos era a de se estabelecerem como comerciantes no Brasil.

AMORES EM DONA CATARINA

Sem intenção de ancorar-se em parte alguma, de índole aventureira, e solteiro, em 1881 Pedro Verani envolve-se num possível romance com Ana Brandina dos Santos, jovem que vivia no bairro hoje conhecido como Dona Catarina na cidade de Mairinque, região que pertencia ao município de São Roque e que já foi tida como um dos berços do café.

Desse relacionamento nasce, em 11 de março de 1882, o pequeno Francisco, filho natural de Maria Brandina e Pedro Verani. Somente quando jovem seria registrado pelo pai com o sobrenome Verani. Nos anos seguintes, Pedro Verani viajaria diversas vezes à Itália em busca de mercadorias e foi na volta de uma dessas travessias que encontrou enferma, a mãe de seu filho. Ela morreria pouco tempo depois.   
Dividido entre a responsabilidade que assumira para si, de criar o menino Francisco, e seu trabalho como vendedor ambulante, Pedro Verani precisava encontrar uma saída. Assim, apelou para os amigos para que pudesse continuar a atravessar o Atlântico em busca de mercadorias.

No tempo em que ficara em São Roque ele conhecera a família Salvetti, o casal Luiz e Carlota, de origem italiana, que se instalara na cidade na mesma época. E foi seu filho mais velho, Sabattino Salvetti, quem recebeu a incumbência de se responsabilizar pelo pequeno Francisco durante as viagens do mascate.
Anos depois, após conseguir juntar algum dinheiro, percebendo a necessidade de estar perto de seu filho, Pedro Verani consegue finalmente realizar o sonho de abrir uma casa comercial em São Roque, um armazém na rua depois nomeada XV de Novembro que, como era costume na época, vendia de tudo, de alimentos a tecidos, e que daria origem à centenária Casa Verani.

Em suas memórias sobre essa casa comercial, Francisco Verani, já adulto, lembraria – entre as muitas histórias narradas a Eddie Alonso, funcionário da Casa Verani por vinte e seis anos – que seu pai, ao baixar as portas do estabelecimento, revivia um costume que trouxera da Itália, reunindo amigos para encontros de carteado que seguiam noite adentro, enquanto o menino dormia deitado sob o grande balcão de madeira do armazém.

DUPLO CASAMENTO

A amizade entre os Verani e a família Salvetti se estreitara. Francisco, ainda adolescente, começa a namorar Isolina, uma das irmãs de Sabattino Salvetti. E Pedro Verani, que pretendia casar-se, já se interessara por Amélia, a caçula dos Salvetti. Era grande a diferença de idade entre o casal, mas a atração que os unia era mútua. Apesar de muito jovem – Amélia ainda não completara quinze anos – casaram-se e, entre 1897 e 1901, tiveram quatro filhos: Adelina, Josefina, Reinaldo e Iolanda. Cerca de um ano e meio depois de ter dado à luz a menina mais nova, Amélia morre de complicações no parto do quinto filho.
Com a perda da esposa, Pedro Verani mergulha numa possível depressão, adoece gravemente e morre poucos meses depois.
Com quatro crianças órfãs, em idades que não passavam dos seis anos – irmãos de Francisco Verani e sobrinhos de Isolina, sua namorada – esse casal, unido em matrimônio, assume a guarda dos pequenos.


Isolina e Francisco Verani (álbum da família Amosso)

PAI DE SI MESMO

Francisco Verani e Isolina Salvetti casaram-se em 1904 e além das quatro crianças que adotaram, tiveram mais seis filhos: Pedro, Amélia, Mário, Julieta, Maria e Roque.
Os dois primeiros, cujos nomes homenageavam as pessoas queridas que já não estavam entre eles, morreram ainda pequenos, como era comum no início do século 20. Amelinha, antes de completar três anos e Pedrinho, aos oito, levado pela gripe espanhola.

O casal Francisco e Isolina viveria por muitos anos em São Roque e seria o esteio de uma família de origem italiana, que se consolidaria social e economicamente na cidade.
Já idoso, ao contar suas histórias, Francisco Verani afirmava divertido que chegara à conclusão de que era pai de si mesmo. Pois, se tinha sido pai de seus irmãos ainda bem pequenos, se seus irmãos eram seus filhos, então, não lhe sobrara outra opção de parentesco: era pai dele mesmo.

CASA VERANI

Mas se Francisco Verani foi o centro de uma numerosa família são-roquense, a Casa Verani, uma loja de ferragens aberta por ele em 1916, seria por muitos anos um ponto de encontro da cidade. De lá saíram decisões políticas e soluções para problemas diversos, dos matrimoniais aos de negócios, sempre com as sábias opiniões de seu Chico Verani.
Para o senhor Vasco Barioni, que adquiriu a Casa Verani dos irmãos Mário e Roque, em 1976, e a conservou com o mesmo nome até 2005, Chico Verani era um pouco filósofo, estava sempre ajudando as pessoas, às vezes com dinheiro, às vezes com conselho. 
Vasco se recordou de duas passagens que dizem um pouco de Francisco Verani.

Contou ele:
“O Domingos de Moraes, avô dos Peta, era um músico, tocava bombardino. E o capitão Danton  (Castilho Cabral - prefeito) era mestre da banda da Força Pública, em São Paulo. Quando teve um concerto aqui... ele achou que o seu Domingos era um músico exímio, formidável. Ele disse:

- Eu vou dar um concerto em São Paulo e você vai ser o solista.
- Mas, eu, professor?’
- É, você vai tocar seu bombardino...

“Depois que o Danton foi embora, o Domingos chegou para o Chico Verani:
- Chico, o senhor  não sabe o que tá acontecendo, imagine, eu, caipira de São Roque, na banda municipal, não sei como eu vou fazer.
“Aí, Chico disse:
- Você é extraordinário. Você não faz feio, se faz bonito aqui em São Roque, pode fazer lá também.
- Será?
E custou para animar o homem. Ele chegava lá:
- O Senhor é bom,seu Chico, mas não tem que tocar nada, não toca nenhum instrumento, eu tenho que estudar todo dia, toda noite. Duas vezes por semana, tenho que ensaiar lá em São Paulo.
“Mas ele se saiu muito bem no concerto e quando veio, disse:
- Chico, graças a Deus e graças a você, eu venci!”
 
Vasco lembrou–se, ainda, de outro episódio:
“Depois veio o Antônio de Oliveira Pinto, veio de Araçariguama e foi se consultar com o Chico Verani:
- Chico, tá ruim lá em Araçariguama, queria abrir uma loja de ferragens aqui, você não vai achar ruim?
 
“Chico era formidável, não era egoísta, não estava preocupado com a concorrência:
- O que você quer Antônio? O que você precisar de mim...
“E o Chico Verani apoiou seu Antônio na abertura do novo negócio e hoje os Oliveira Pinto estão muito bem. O Chico Verani, sempre dava uma mãozinha: Faça isso, faça aquilo, se alguém tinha alguma dificuldade...”



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sexta-feira, 27 de maio de 2011

LA POVERA GENTE? II


Quando se iniciou a emigração para o Brasil, a higiene nos navios era precária e as doenças contagiosas se disseminavam com facilidade. Como não havia ainda medicamentos para combater muitas das moléstias infecciosas, famílias esperançosas embarcavam no navio em algum porto italiano com onze filhos, por exemplo, e chegavam ao Brasil com apenas cinco deles. Nessa época, o mar sepultou muitas crianças louras, de olhos claros e sorriso curioso e, com elas, uma porção do brilho no olhar de seus pais.

VENETO E PIEMONTE

No Veneto e no Piemonte, devido à pobre dieta à base de polenta, havia o costume de se dar vinho às crianças pequenas, devido à crença de que vino fa sangue – vinho faz sangue. Nas áreas agrícolas da Toscana, principalmente próximas a Prato, era comum, principalmente entre os idosos, viver em pequenas casas de pedra com apenas um cômodo sem janelas.
A pobreza era tão grande nessas regiões e as famílias tinham tantos filhos que, entre comprar remédios para uma criança ou um doente incapacitado para o trabalho, e um bovino, a prioridade era dada ao animal que poderia gerar alimentos para o restante da família.
Nas regiões mais pobres da Itália, a expectativa de vida no final do século 19 era muito baixa e a mortalidade infantil, alarmante.

Piemonte, a pobre região do noroeste da Itália do início do século 20, cujo nome significa ao pé do monte, por estar próxima aos Apeninos e aos Alpes, neste 2011, é um próspero centro industrial, que abriga as fábricas da Fiat, instaladas em Turim, e provoca assim, a migração do sul do país e a imigração de países como o Brasil. É o ponto de partida natural para um passeio turístico pela Itália. Piemonte reivindica o direito de encerrar em si a origem do próprio país. Ali ocorreu um dos mais importantes episódios da unificação da Itália, que envolveu a participação de Giuseppe Garibaldi. De clima continental, é onde se produzem alguns dos melhores vinhos da Itália e atrai milhares de turistas para a belíssima região do Lago Maggiori. De Piemonte vieram para São Roque as famílias Amosso, Collo, Pennone, Picena, Reviglio e outras.

O Veneto, região que sofreu uma considerável diminuição de sua população em função da emigração, destaca-se nos dias de hoje na economia italiana por sua transformação de centro agrícola em centro industrial, com pequenas e médias indústrias de áreas diversificadas, que vão das siderúrgicas às alimentícias. É uma região que abriga belas e prósperas cidades, entre elas a romântica Veneza, e Verona, rica em indústrias, na agricultura e nos monumentos arquitetônicos que remetem ao passado. Do Veneto vieram para São Roque, entre outras, as famílias Bellini, Caetano, Christanello, Mangini, Pascoaloti, Tortato. 

Em menor número, são as famílias de imigrantes italianos radicados em São Roque no século 19, originárias da Campania, Calabria, Emília Romagna, Lombardia, Marche e Sicilia. Vieram de alguma dessas regiões as famílias Bellinghini, Burghi, Brega, Fioravante, Gagliardi, Júdica, Nastri, Tanzi, Valdambrini, Viola entre outras.

TOSCANA

A poverella Toscana do início do século 20, berço da língua italiana, onde se vislumbrou, no passado, toda a influência da civilização etrusca, amante da arte e praticante de técnicas agrícolas avançadas, é rica na beleza da paisagem e nos monumentos artísticos. Sua culinária é diversificada. A capital, Florença, onde nasceu a arte Renascentista, observa um historiador, mostra em suas ruas, ainda hoje, rostos parecidos com os que Da Vinci ou Botticelli pintaram há quinhentos anos. Os toscanos são considerados uma espécie de raça à parte, trabalhadores, severos, mas imaginativos e brincalhões. Da Toscana vieram para São Roque imigrantes das famílias Conti, Maraccini, Pagliai, Salvetti, Tagliassachi, Verani, entre outras.
A pobre Itália de onde partiram os primeiros imigrantes que chegaram a São Roque, é hoje um dos principais países da Europa. A reconstrução no segundo pós-guerra mundial levou o progresso a esse país, que hoje recebe emigrantes de todo o mundo.

Mas, as lições do passado parecem ter sido gravadas no fundo da alma desse povo, tanto que os italianos, os quais em muitas cidades ainda conservam o costume de colocar a mesa na rua e reunir os vizinhos para comer, ainda dizem com a ênfase dos dias difíceis:

- Povera Itália!

Essa é uma de suas expressões preferidas, após uma ótima refeição ao lado de amigos e depois de saborear um delicioso vinho. Em seguida, começam a reclamar dos serviços públicos, do governo, dos correios etc.
Nem eles mesmos poderiam imaginar que sua terra passaria por essa transformação. Os italianos são, atualmente, na Europa, os que melhor se alimentam, têm educação de primeira qualidade, a mortalidade infantil no país é muito pequena e a expectativa de vida aumentou. A Itália supera, em média, a Europa Ocidental em bens de consumo e, embora o sul ainda seja atrasado em relação ao norte do país, essa grande mudança aconteceu em apenas cinqüenta anos.

As histórias que se seguirão narram a trajetória de algumas das primeiras famílias que chegaram a São Roque e seus descendentes ainda permanecem na cidade. Vieram no início da imigração italiana no Brasil, chegaram com a primeira leva de imigrantes, em sua maioria, trazidos oficialmente para trabalhar nas lavouras de café do Estado de São Paulo. Mas muitos não se acostumavam ao rigor das fazendas cafeeiras e partiam para outras cidades. Em São Roque, chegaram principalmente para trabalhar na segunda tecelagem instalada no Brasil, por Enrico Dell"Acqua, o Príncipe Mercacante italiano. Porém, entre eles, havia os que vinham por conta própria, pelo sabor da aventura, para tentar uma nova vida na América e não eram necessariamente agricultores ou operários. Podiam ser comerciantes, profissionais liberais, artistas...


Imagem: Viúva Zecchi, proprietária de hotel no distrito de Mairinque,São Roque, com filhos e sobrinho, década de 1920
(álbum da família Salvestrim)

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quinta-feira, 26 de maio de 2011

La Povera Gente? I


As estimativas da embaixada da Itália dão conta de que no Brasil há, neste 2011, mais de 25 milhões de italianos e descendentes, quando a população da Itália gira em torno de 64 milhões. No estado de São Paulo, o consulado italiano afirma que são mais de 6 milhões e, em São Roque, cidade a 58 km da capital paulista, dados extra-oficiais apontam para cerca de 25 mil italianos e descendentes, o que corresponde a quase um terço da população.

Esses números tornam o Brasil um dos países que mais receberam italianos em todo o mundo; fazem de São Paulo, o estado com a maior colônia italiana do Brasil; e de São Roque, uma das cidades mais italianas do estado de São Paulo.

A contribuição que a colônia italiana deu para o Brasil, na produção industrial, na cultura, na música, na culinária, no teatro, só para citar as áreas de maior nobreza, pode, no mínimo, ser chamada de rica. No estado de São Paulo, lembramo-nos do trabalho nas lavouras de café, nas indústrias, e temos, atualmente, na capital, uma das maiores concentrações da colônia italiana com seus costumes misturados à cultura local, no folclore, nas festas populares, na gastronomia. Em São Roque, italiano nos lembra Brasital, produção de uva, vinho e nos dias de hoje, os sabores das pastas, brodos e outras delícias do Stefano, Langoletto, Tia Lina, Nona Nunziata, só para lembrar alguns.

É possível imaginar que toda essa riqueza originou-se de um povo que já foi chamado la povera gente? É um paradoxo, mas a pobreza na Itália presenteou os brasileiros com as pérolas de uma diversidade de influências que modificaram para sempre a vida em muitas localidades do país.

Os primeiros italianos que chegaram a São Roque eram originários de regiões muito pobres na Itália, ao final do século 19, quando se deu o início da emigração em massa para o Brasil.
Podemos afirmar que a maioria das famílias que se estabeleceram em São Roque nesse período é proveniente de regiões como o Piemonte e o Veneto, ao norte, e a Toscana, na média Itália.

Em Odissee, livro ilustrado com fotos da época, o historiador italiano Gian Antônio Stella relata que em meados de 1800, no Veneto, onde ficava o maior centro de tratamento de pelagra da Itália, a doença atingia muitas pessoas em decorrência de se alimentarem exclusivamente de polenta – eram consumidos 33 kg de farinha per capita, por ano, o que causava o mal dos três Ds: dermatite, diarréia e demência.

Imagem: Italianos em São Roque em 1904
(autoria desconhecida)


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quarta-feira, 25 de maio de 2011

O que faríamos sem eles?


 Imigrantes italianos no clube de Pantojo - São Roque - 1912
(autoria desconhecida)


Quem já não sentiu irresistível atração pelo aroma e o sabor do spaghetti da mamma aos domingos? Há quem goste com molho à bolonhesa e quem prefira com linguiça calabresa. Outros sentem água na boca só em pensar num crocante bife à milanesa. Alguns sonham em passar a noite de sexta numa animada cantina, saboreando um tagliatelli, um ravioli ou uma cremosa polenta, regada a vinho, ao som da genuína tarantella. Mas a maioria concorda que no cardápio de sábado à noite não pode faltar uma deliciosa pizza. O vegetariano talvez escolha a de berinjela. E o que dizer de um aromático cappuccino acompanhado de uma fatia quentinha de pão italiano, recém-saído do forno, nas tardes frias de inverno? O que faríamos sem essas delícias da bella Itália?

Que sensações nos despertam a sonoridade e o sentido de palavras como caricatura, fiasco, allegro, aquarela, bandolin, concerto, confete, serenata, camarim, piano, boletim, carnaval, maestro, mortadela, palhaço? E o que dizer daquela que mais permanece em nossa boca? O ciao, que já transformamos em tchau?

Qual de nós nunca se sentiu embalado pela cantilena do sotaque que os oriundi nos deixaram como herança?

Quem não daria tudo para ouvir, de repente, assim do nada, um Dio, come ti amo!?
E quem ainda não se animou com a deliciosa ilusão revelada na mensagem entregue pelo periquito de um realejo?

Como não se divertir numa partida de tômbola ou num jogo de boccia, a nossa bocha?
Dá para imaginar a vida sem os sonoros costumes e a alegria dos italianos?

Muitos desses imigrantes escolheram a cidade de São Roque-SP para ser a terra nostra que, por suas paisagens e costumes, com ela se identificaram como se sua fosse de fato. Eles são a razão destas páginas, baseadas em relatos de italianos e descendentes que por mais de um século acrescentaram cor e sabor à vida dessa cidade.

O Projeto Andiamo... Memórias da Imigração Italiana em São Roque tem a pretensão de testemunhar as histórias de famílias vindas dos mais longínquos lugares da Itália e mostrar como se entrelaçam com a História da própria cidade de São Roque, na construção e no trabalho de quase um século da tecelagem cujo nome é a fusão das palavras Brasil e Itália; nos caminhos trilhados ao lado de portugueses e espanhóis numa verdadeira aventura que levou a cidade a ser conhecida em todo o país como Terra do Vinho; na explosão da economia local do início do século 20, com a expansão da construção civil, novos profissionais liberais, aberturas de casas comerciais e indústrias diversas; no fomento à conscientização da classe operária sobre seus direitos; na condução do destino político da cidade; na imprensa; no desenvolvimento cultural que, na primeira metade do século 20, possibilitou uma efervescência jamais vista, com formação de grupos teatrais locais, concorridas apresentações de companhias de teatro e circo, recitais de música clássica, saraus literários, corporações musicais, as bandas, e cinemas; e na herança das tradições locais.

O propósito deste blog é ser o aperitivo para o livro que tem como caminho redescobrir as origens e a trajetória de italianos que escolheram São Roque, e entender com que intuitiva esperança atravessaram um oceano, atraídos por uma terra onde não somente foram capazes de sobreviver, mas de viver e de brindá-la com sua brilhante contribuição.

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